Quando o Flamengo apresentou ao mundo seu primeiro hino, muita coisa já havia acontecido na vida do Clube – até mesmo a denominação, pois já não era mais um Grupo, como se chamou por ocasião da fundação. O azul e ouro haviam sido trocados pelo vermelho e preto, e a expansão dos mares para a terra já era uma realidade vitoriosa. Afinal, no seu aniversário de 25 anos, o Flamengo já ostentava um bicampeonato de futebol, conquistado nos anos de 1914 e 1915.
Soa até profético que a composição de Paulo Magalhães falasse em “campeão de terra e mar”, glória que só se tornou realidade 13 dias depois, em 28 de novembro de 1920, quando o time de futebol bateu o Andaraí por 2 a 1 para levantar a taça, o que os rapazes do remo haviam feito três meses antes.
Não, não era profecia. Ser “campeão de terra e mar” era uma alusão a já ter se consagrado nos dois âmbitos, não necessariamente no mesmo ano. O “Hino Rubro-Negro” foi concebido em 1918, quando o Clube já era bicampeão tanto do remo quanto do futebol. Todavia, só no ano seguinte o autor o apresentou à diretoria, o penúltimo passo antes da execução pública de 15 de novembro de 1920, cantado por 200 vozes – incluindo aí atletas de todas as modalidades e associados – na sede da Rua Paysandu, acompanhadas pela Orquestra Cícero.
É fato que Paulo Magalhães falava com propriedade. Além de estar pavimentando sua vida de homem de teatro, era atleta do Clube, com atuação nas equipes de futebol, basquete e hockey. Das artes, trazia a sensibilidade para a leitura do que vivenciava nas canchas: a glória flamenga era lutar.
Hino Rubro-Negro
(Paulo Magalhães)
Flamengo, Flamengo,
Tua glória é lutar,
Flamengo, Flamengo,
Campeão de terra e Mar (bis)
Saudemos pois com muito ardor,
o pavilhão do nosso amor.
Preto e encarnado, idolatrado,
dos mil campeões, o vencedor.
Flamengo, Flamengo,
Tua glória é lutar,
Flamengo, Flamengo,
Campeão de terra e Mar
Lutemos sempre com valor infindo
ardentemente com denodo e fé.
Que o futuro inda será mais lindo,
que o teu presente, que tão lindo é.
Flamengo, Flamengo,
Tua gloria é lutar,
Flamengo, Flamengo,
Campeão de terra e Mar.
Até que ocorresse a primeira gravação do “Hino Rubro-Negro”, a peça era executada em eventos do Clube e em saraus, como o acontecido na noite de 5 de agosto de 1921, no teatro Trianon. Naquela noite, nas duas sessões, Abigail Maia, cantora e atriz de cinema e teatro – futuramente, também atriz da Rádio Nacional – interpretou a composição na presença de Paulo Magalhães. Este, na segunda parte do espetáculo, antecipava o que viria a ser conhecido hoje como stand-up comedy, com um monólogo sobre as coisas do futebol, vistas com o humor que lhe era característico.
O pesquisador e escritor Paulo Tinoco aponta que o “Hino Rubro-Negro” só foi registrado em disco em 1937, pelo cantor Castro Barbosa, acompanhado pela Orquestra RCA Victor. No lado dois do acetato em 78 RPM, Castro Barbosa eternizou uma marcha que há muito embalava os bailes de carnaval dos flamengos: “Piranha”, de Armando Fernandes. Essa e outras histórias estarão no livro de Tinoco, previsto para 2024, “FlaMÚSICA – Memória musical Rubro-negra (e a cultura flamenga no cotidiano nacional)”.
Todavia, não seria a composição de Paulo Magalhães o hino mais famoso do Flamengo. Lamartine Babo compôs marchas para os times que tomaram parte do Campeonato Carioca de 1943, para o programa de auditório Trem da Alegria, que apresentava junto a Héber de Bôscoli e Yara Salles. A primeira apresentação pública de “Sempre Flamengo” foi na noite de 10 de janeiro de 1944, no Teatro João Caetano. O tricampeonato de futebol conquistado pelo Flamengo em outubro daquele ano ajudou na popularidade da canção. A primeira gravação foi lançada em 1945, pelo grupo 4 Azes e um Coringa. Em 1950, aconteceu a primeira regravação, pelo Trio Melodia, sob o título de “Marcha do Flamengo”. Seis anos mais tarde, Gilberto Alves também gravou os versos de Lamartine, já como “Hino do Flamengo”, nome imortalizado pela história e pela arquibancada dos estádios mundo afora.
Hino do Flamengo
(Lamartine Babo)
Uma vez Flamengo, sempre Flamengo
Flamengo sempre eu hei de ser
É meu maior prazer vê-lo brilhar
Seja na terra, seja no mar
Vencer, vencer, vencer!
Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!
Na regata, ele me mata
Me maltrata, me arrebata
Que emoção no coração!
Consagrado no gramado
Sempre amado, o mais cotado
Nos Fla-Flus é o Ai, Jesus!
Eu teria um desgosto profundo
Se faltasse o Flamengo no mundo
Ele vibra, ele é fibra
Muita libra já pesou
Flamengo até morrer eu sou!
Assim, o Flamengo tem dois hinos. Ambos leituras de suas épocas do que era o Flamengo, como se fossem os valores fundamentais, as cláusulas pétreas da secular paixão vermelha e preta. Afinal, porque nossa glória é lutar e somos Flamengo até morrer.