Manto Sagrado – História – Museu Flamengo

Mais que uma camisa, uma bastilha inexpugnável, o Manto Sagrado

 

As linhas gerais da história da camisa do Clube de Regatas do Flamengo são conhecidas. Já na sua fundação, ainda como Grupo de Regatas, em 1895, as cores da agremiação foram definidas no artigo 32 do Estatuto, que dispôs sobre a bandeira. O pavilhão seria predominantemente azul celeste e ouro, tendo no canto um fundo preto sobre o qual se cruzariam duas âncoras vermelhas. O azul, da Baía de Guanabara e do céu que cobria a Capital da República; o ouro, das riquezas naturais e do astro rei. E no alto, à espreita, o vermelho e o preto que se transformariam em uma nação. Uma, vírgula. A Nação. Única. Nossa.

O tecido que vestia os remadores vinha da Inglaterra. O uso contínuo, no mar e sob o sol, fez desbotar. E foi por sugestão do fundador Nestor de Barros, conforme aponta Roberto Assaf, que, na Assembleia de 23 de novembro de 1896, o Flamengo passou a adotar o vermelho e o preto que estavam lá no alto do pavilhão. Ou foi, em justiça poética, por eles adotado. O Vermelho e o Negro, como estabeleceu Ruy Castro.

A mudança foi registrada com breves palavras, quase as mesmas, por dois jornais, em suas edições de 24 de novembro, ao noticiar a reeleição do presidente Domingos Marques de Azevedo. Anotou O Paiz: “Pela mesma assembléa foi resolvida a mudança das côres do Club; que, de ora em diante, serão vermelha e preta, em logar de azul e ouro.” E o Jornal do Commercio: “A mesma assembléa tomou a deliberação de mudar as cores do Club, que, de azul e ouro, passão a ser de ora em diante vermelha e preta”.

Até que se encontre um registro anterior, a primeira foto publicada na imprensa de atletas do Flamengo vestidos com a camisa vermelha e preta foi na edição 357 da Semana Sportiva, em 28 de outubro – data em que celebramos São Judas Tadeus e o torcedor flamenguista – de 1899. Na imagem, estão os remadores rubro-negros que venceram dois páreos na Grande Regata do Icarahy, 13 dias antes, com a canoa Tymbira e com a baleeira Ypiranga, com suas medalhas no peito.

A foto, estampada na capa da publicação em preto e branco, foi resgatada na obra Me Arrebata, de Mauricio Neves de Jesus e Renato Dalmaso, e pintada em aquarela para que a altivez dos vencedores pudesse ser eternizada em suas cores originais. Aquelas foram as primeiras vitórias esportivas do Flamengo. O primeiro remador é o fundador José Agostinho Pereira da Cunha, o Zezé. Primeiro da foto e primeiro dos seis jovens remadores originais. Junto a Zezé, estão Napoleão Coelho de Oliveira, Carlos de Souza Costa, Felisberto Laport, Ubaldino Amaral, Lima Júnior, Alberto Loth e Álvaro Tourinho. Os ancestrais mais remotos de todos os que venceram, vencem e vencerão usando aquele Vermelho e Preto.

Em 1901, a guarnição da baleeira Ypiranga já era composta por outros nomes e seus remadores vestiam vermelho e preto, mas com as iniciais CRF em branco, entrelaçadas e centralizadas no peito sobre as listras rubro-negras. Tirante a identificação através do monograma, ainda era a mesma vestimenta.

A segunda grande mudança na camisa do Flamengo não foi nas cores, mas no desenho, e se deu quando o Grupo já era Clube – a mudança ocorrera em 1902. Em 1911, o Flamengo criou o seu Departamento de Esportes Terrestres, para a prática do foot-ball. O grande incentivador foi o remador rubro-negro Alberto Borgerth, que já praticara a modalidade com excelência em outras agremiações. A turma do remo entendeu que seria de bom tom diferenciar uns dos outros. Assim, nos campos, o futuro Urubu nascia Papagaio.

O primeiro jogo do Flamengo terrestre foi no dia 3 de maio de 1912, no ground da Rua Campos Salles, sede do America. As camisas quadriculadas logo seriam apelidadas de Papagaio de Vintém, uma alusão às pipas baratas empinadas pelas crianças. Na estreia, os rubro-negros do Flamengo bateram os rubro-negros do Mangueira por 15×2, e Gustavo de Carvalho marcou o gol inaugural antes que fossem completos 60 segundos de disputa.

Antes da partida contra o Paysandu, em 6 de outubro daquele ano, que terminaria empatada em um gol, foi tirada a foto mais antiga do time posado do Flamengo terrestre que se tem notícia – já sem Gustavo de Carvalho, que havia deixado o Rio para estudar e jogar futebol no Armstrong College, da Inglaterra. Estão na foto Lawrence, Amarante, Píndaro, Baena, Nery, Gallo, Curiol, Arnaldo, Zé Pedro, Miguel e Alberto Borgerth, o pai do futebol vermelho e preto.

No dia 14 de abril de 1913, em reunião da Liga Metropolitana de Sports Athleticos, Alberto Borgerth representou o Flamengo e apresentou a nova camisa, que substituiria a Papagaio de Vintém. Ao longo das décadas, a literatura consolidou a versão de que o Flamengo dos campos havia desistido de sua primeira camisa, atribuindo-lhe a fama de azarada por ter com ela perdido os campeonatos de 1912 e 1913. No entanto, em 1913 o Flamengo já disputaria o Campeonato Carioca com sua nova camisa. Além disso, foi com a primeira camisa que o Flamengo conquistou seu primeiro título no futebol: o de Campeão Carioca dos Segundos Quadros, ainda em 1912.

O motivo de o Flamengo deixar de ser Papagaio de Vintém para ser Cobra Coral foi de ordem prática. A camisa quadriculada precisava ser encomendada da Inglaterra, com seu desenho tipicamente britânico. Já a nova camisa, com listras horizontais como no remo, mas com frisos brancos a separá-las – o que lhe rendeu o apelido – era produzida no Brasil. Com ela, o Flamengo chegou ao tricampeonato dos Segundos Quadros, juntando ao título de 1912 os de 1913 e 1914, tornando-se o detentor definitivo da Copa Caxambu, além de se tornar bicampeão dos Primeiros Quadros, em 1914 e 1915.

As conquistas do futebol, de crescente popularidade, elevaram o nome do Flamengo. Assim caiu por terra a resistência dos remadores em ver-se com o mesmo uniforme dos footballers e os atletas das duas modalidades faziam festivas confraternizações na sede da praia, a mítica República Paz e Amor. Some-se a isso a semelhança da Cobra Coral com a bandeira da Alemanha Imperial, com quem o Brasil pôs-se em Estado de Beligerância. No dia 4 de junho de 1916, o Flamengo inaugurou oficialmente a sua praça de esportes, na Rua Paysandu, e apresentou uma camisa que o diferenciava dos alemães e unificava remo e futebol. Somos Flamengo, seja na terra, seja no mar.

Em 1937, o Flamengo viveu um ano de inovações, implementadas pelo treinador húngaro Izidor Dori Kürschner. Além das novidades táticas, Kürschner concebeu e instituiu o uniforme alternativo, quase todo branco, com uma faixa vermelha acima e uma preta abaixo na altura do peito. A inovação tinha objetivo duplo: melhorar a visualização nos jogos noturnos com iluminação deficiente e diferenciar de adversários que jogassem com cores conflitantes, como era o caso do America. No entanto, a nova camisa agradou tanto que foi usada até quando as circunstâncias não exigiam o traje branco.

A bem da verdade, importante registrar, é que o Flamengo já havia jogado com camisas brancas anteriormente. No primeiro jogo da história do Clube, contra o Mangueira, já houve uma certa confusão, visto que o adversário usava camisas rubro-negras em listras verticais. Depois disso, em algumas oportunidades, Flamengo e Mangueira entraram em acordo e um dos times jogou de branco, mesmo não sendo seu uniforme. No caso do Flamengo, isso aconteceu em 20 de julho de 1919 (vitória por 8 a 0), em 7 de novembro de 1920 (vitória por 2 a 1) e em 1º de abril de 1923 (vitória por 3 a 1). A descoberta é do pesquisador Celso Júnior, do site Flaestatística.

Nos gramados, a camisa rubro-negra só foi apresentar outras mudanças significativas em 1980. E já não era mais uma camisa. Era o Manto Sagrado da Nação chamada Flamengo.

Para que a camisa do Flamengo passasse a ser conhecida como Manto Sagrado, muita coisa aconteceu. Sagrado, no caso, é também de santidade, mas principalmente dos poderes extraordinários que ele, o Manto, confere a quem o veste.

Em 29 de outubro de 1916, o Flamengo ia sendo derrotado pelo Botafogo por 2 a 1, em plena Rua Paysandu, e buscava o empate. Porém, a sete minutos do fim, o adversário ampliou sua vantagem para 3 a 1. Foi aí que o Emmanuel Nery, a elegância em forma de zagueiro, abandonou a organização tática e lutou em todos os lances, como se aquela derrota estive lhe custando a própria vida. E, que se relembre, não era usual um zagueiro ir ao ataque, muito menos fazer gols, a não ser em tiros livres, com Píndaro. Pois Nery, onipresente, diminuiu a vantagem do Botafogo quando faltavam três minutos, e no último lance da tarde empatou o jogo. Nery saiu da Paysandu nos braços da torcida.

O emblemático gol de Valido, contra o Vasco, em 1944, também alimentou a mitologia. Valido havia parado de jogar há dois anos. Febril, mal se aguentava em pé na tarde de 29 de outubro. Mas veio o cruzamento de Vevé no fim do jogo e Valido subiu como se tivesse asas para testar para o fundo do gol a bola do primeiro tricampeonato. Passou duas semanas de repouso para se recuperar do esgotamento. Cinquenta anos depois, octogenário, Valido compareceu à Gávea para uma de suas reinaugurações, e o levaram para a baliza à direita da arquibancada para que reproduzisse o lance. Valido cabeceou a bola para a meta, abraçou seu amigo Flávio Costa, o técnico daquela conquista, e balbuciou: “Esta camisa tem algo de mágico, não tem?”

 

Fatos assim, contados de geração em geração, formavam rubro-negros. Um deles, o jovem cartunista Otelo Caçador assinava, na década de 1950, uma coluna no Jornal dos Sports, intitulada O Petardo. Nela, Otelo elencava sucessos do cinema e os relacionava ao futebol. “Os Brutos Também Amam”, por exemplo, um faroeste de George Stevens, Otelo dizia ser estrelado por Pavão. E, na edição de 28 de abril de 1954, o filme “O Manto Sagrado” foi atribuído à camisa do Flamengo.

Se Otelo Caçador foi o primeiro a chamar a camisa do Flamengo de Manto Sagrado, o que ele repetiu algumas vezes naqueles anos do segundo tricampeonato, outro rubro-negro disseminou a expressão nas ondas do rádio. Em 1955, a Emissora Continental passou a transmitir às quintas-feiras o programa A Voz do Flamengo, comandado por Pedro Nunes. Nele, Celso Garcia, o homem que na década seguinte descobriria Zico, não perdia a oportunidade de falar em tom professoral que “vestir a camisa do Flamengo é vestir o Manto Sagrado do esporte”.

Na mesma década, o insuspeito Nelson Rodrigues escreveu linhas imortais sobre a camisa do Flamengo. “Como resistir a uma camisa que tem suor próprio, que transpira sozinha, que arqueja, e soluça, e chora?”, perguntava Nelson, que escolhia o personagem da semana em suas crônicas, e que após uma vitória de virada do Flamengo sobre o Santos de Pelé, em pleno Pacaembu, afirmou que o personagem daquela semana era a camisa do Flamengo. “Bastilha inexpugnável”, decretou.

As comprovações de que os torcedores começavam também a chamar a camisa rubro-negra de Manto Sagrado estão na seção de cartas do Jornal dos Sports, de modo tímido no final da década de 1960 e mais frequentemente a partir de 1978. E o mesmo jornal, em sua edição de 7 de abril de 1979, na capa que abria a matéria da goleada do Flamengo sobre o Atlético Mineiro por 5 a 1, estampava a foto do time abaixo da manchete “A noite em que Pelé usou o Manto Sagrado”.

Sabiam disso o Otelo Caçador, o Celso Garcia e o Pelé. Sabem disso o Junior, que se tornou Maestro, o Rondinelli, que se tornou Deus da Raça, o Adriano, que se tornou Imperador, o Zico, que se tornou Rei. Sabe disso o Gabriel, do Milagre de Lima, e sabem disso os milhões que são devotos da camisa vermelha e preta. O Manto é Sagrado.